sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O indizível sofrimento de Maria Santíssima, Corredentora do gênero humano

Meditação XI: "Da cruel espada de angústia que traspassou o Coração da Virgem ao pé da Cruz e em sua solidão. In: Meditações sobre os principais mistérios da Virgem Santíssima Senhora Nossa – Mãe de Deus, Rainha dos Anjos e Advogada dos pecadores
Pe. Manuel Bernardes, 1ª Ed., 2010, Brasília: Editora Pinus (ISBN 978.85.63176-01-1, conforme o titulo original de Lisboa, Portugal, Congregação do Oratório, 1737)

(Livro disponível para compra em: www.editorapinus.com.br)



Pe. Manuel Bernardes, Congregação do Oratório (Lisboa, Portugal, 1644-1710)



MAGNA EST VELUT MARE CONTRITIO TUA. (Lm 2, 13) 

A Espaçosa e profunda vastidão do mar Oceano, quem a pode medir ou avaliar, ainda que em partes o navegasse ou visse superficialmente? Assim também a grandeza e acerbidade das penas e angústias que atormentaram o piedosíssimo coração da Virgem Santíssima na Sagrada Paixão e Morte de seu Bendito Filho e nosso Salvador JESUS Cristo, são maiores que toda a explicação e conceito que deste objeto podem formar pessoas ainda muito espirituais e ilustradas. Não deve todavia ser isto causa para deixarmos de meditar e ponderar estas penas, desse curto e diminuto modo que alcançamos: assim porque a dignidade da matéria merece ao menos este ínfimo grão do nosso agradecimento, como pelo muito que a Deus e à Virgem é agradável e a nós proveitosa esta devota memória. E porque o saber qualquer fiel sentir alguma parte destas penas, é especial graça de Deus: implorando esta primeiro com humildes e fervorosos desejos, podemos ir discorrendo pelos seguintes princípios. 

Meditação I 
E seja o primeiro considerar algumas graves sentenças que os Santos disseram nesta matéria, para que se a luz não chega a nossos olhos direta, chegue ao menos por reflexos. S. Agostinho e S. Bernardo, alegorizando aquilo de Isaías (Is 33, 7): Angeli pacis amare flebunt: consideram aos mesmos Anjos tomando corpos visíveis para chorarem a Sagrada Paixão e morte do Filho de Deus e, por conseguinte, a paixão e morte espiritual e mística da Mãe de Deus; pois esta com aquela estava intimamente conjunta. Ó alma minha, pára e pondera: é possível que os Anjos tomem semelhança de homens para chorarem, e que os homens tomemos semelhança de brutos ou de pedras para não chorarmos! De que vai isto? O javali, revolvendo-se primeiro no lodo grosso, fica impenetrável aosvenábulos ou lanças dos monteiros. Estamos tão imersos nos gostos ou pesares das coisas terrenas do mundo, que ficamos duros para o sentimento das espirituais e invisíveis que nos propõem a Fé e Piedade (2 Cor 2, 34): Animalis homo non percipit ea, quae sunt spiritus Dei. O glorioso Doutor S. Boaventura diz: Quaero Matrem Dei et invenio spinas et clavos: quaero MARIAM et invenio vulnera et flagella, quia tota conversa est in ista: O que vou buscar (diz o Santo) é a Mãe de Deus, e o que acho são espinhos e cravos. O que vou buscar é a MARIA; e o que acho são feridas e açoites; e assim é, porque toda ela está convertida e transformada nestas coisas. Pondera, que assim como a figura da sagrada Humanidade de Cristo desapareceu debaixo da multidão e peso de suas penas — Quase absconditus vultus ejus, et despectus, unde nec reputavimus eum (Mt 53, 3), Ego autem sum vermis et non homo (Sl 21) — assim a figura da lastimada Mãe ficou sumida no mesmo escuro e turbulento mar da Paixão do Senhor: nem a pode nesta ocasião encontrar o afeto, senão convertida em Cruz, ou em coluna, ou em coroa de espinhos, ou em lança. Mas tu, alma, devota insiste, e bate com fé, e crê, que dentro destes tormentos persevera a Mãe de Jesus, transformada neles por compaixão amorosa. S. Bernardino diz que tão grande foi a dor da Sacratíssima Virgem na morte de seu amado Filho, que se se repartisse por todas as criaturas capazes de padecer, todas de repente morreriam: Tantus enim fuit dolor B. Virginis in morte Christi, quod si in omnes creaturas, quae pati possunt, dividerentur, omnes súbito interirent. Pondera que prodígio este de dor tão ativa, tão forte, tão poderosa, que até dividida em tantos milhares de vidas, era capaz de as extinguir a todas! E pejate, e aniquila-te, vendo o pouco ou nada que acompanhas as penas de Cristo e da Virgem, fazendo (como podias) penitência, e mortificando-te, e sofrendo as injúrias dos próximos, e adversidades das criaturas. S. Germão afirma que a Virgem nesta ocasião, depois de chorar copiosa e amargamente, até chegou a derramar lágrimas vivas de sangue. Pondera como se verificou aqui a profecia de Joel, de que o Sol se converteria em trevas, e a Lua em sangue: Sol convertetur in tenebras, et Luna in sanguinem: pois a Cristo na cruz cobriam as sombras e horrores da morte: e à Virgem ao pé da Cruz, cobriam lágrimas de sangue. E se o Profeta disse aquilo pelo horrível dia em que Deus há de julgar o mundo: muito mais horrível foi este em que o mundo julgou ao mesmo Deus. Compadece-te aqui daquele columbino, e inocentíssimo coração, que se está vertendo pelos olhos todo ensangüentado; e pede-lhe afetuosamente te alcance lágrimas de verdadeiro amor de Deus e de contrição de teus pecados, que foram a causa de tantas penas; para que naquele horrível dia mereças lograr os frutos do sangue de Cristo. Arnoldo Carnotense diz: Omnino tunc erat uma Christi et MARIAE voluntas; unumque holocaustum pariter offerebat Deo; haec in sanguine cordis, hic in sanguine carnis: Uma só era totalmente a vontade de Cristo e de MARIA; e um holocausto ofereciam a Deus uniformemente: Cristo com o sangue de sua carne, MARIA com o sangue de seu coração. Pondera como concorda bem com isto que a mesma Virgem Santíssima disse, falando com S. Brígida: Sicut Adam et Eva vendiderunt mundum pro uno pomo, ita Filius meus et ego redemimus mundum quase uno corde: Assim como Adão e Eva venderam o mundo por um pomo; assim meu Filho e eu resgatamos o mundo quase com um coração. Ó Virgem piadosíssima, amorosíssima e desconsoladíssima! Com que inteira vontade e com que f iel rendimento oferecesses ao Altíssimo este precioso holocausto! Como se ajuntaram perfeitamente as duas metades deste místico pomo com que foi reparado, cravando-se a vossa metade nas mesmas pontas das setas com que a de JESUS estava traspassada! E em quanta obrigação vos está o mundo, por haverdes sido a tanto custo corredentora sua! Bendito seja Deus, que tanto vos comunico de sua imensa caridade. Ó seja eu por intercessão vossa, e dignação sua, admitido à participação destas penas suas e vossas; que só por serem vossas, e suas, só por serem penas de JESUS e de MARIA, penas do Filho de Deus e da Mãe de Deus, merecem todo o meu desejo e suspiro; e em si tem o prêmio de si mesmas. Ditoso de mim, se quando JESUS é afrontado e perseguido, eu também fora digno de padecer por JESUS perseguições e afrontas! Ditoso de mim, se quando a inocente pomba MARIA é sacrificada, e no candor de suas penas se vêem as salpicas do sangue de suas lágrimas, eu também pudesse ajuntar alguma coisa a este sacrifício, e acompanhar estas lágrimas. Esta fora, sem mais outra glória, a glória de minha alma; padecer, sentir e arder meu pobre coração na doce companhia destes dois corações de JESUS e de MARIA. 

Meditação II 
Outro princípio, pelo qual se pode formar algum conceito do excessivo das penas desta angustiada Mãe, é considerando o altíssimo e perfeitíssimo conhecimento que a Senhora tinha presente da infinita dignidade de seu Filho JESUS Cristo, a quem via desonrado, afrontado e crucificado. Porque acrescenta mais no seu trabalho, quem acrescenta na ciência (Ecle 1, 18): Quis addit scientiam, addit et laborem. De sorte que quando a Virgem Mãe via seu Bendito filho pendente da Cruz entre dois malfeitores, não perdia de vista que este Senhor era o mesmo que no Empíreo reina entre duas Pessoas Divinas; e quando cuspido e esbofeteado seu rosto, tinha presente como nesse mesmo rosto se espelham e são glorificados os Anjos; e assim dos mais tormentos e opróbrios da Paixão do Senhor. Por onde, assim como só a Senhora entre todas as criaturas capazes de sentimento sabia penetrar o abismo da excelentíssima e sempre adorável dignidade de Cristo, só ela por conseguinte podia dar fundo ao sensível e custoso de suas penas e afrontas. E todo aquele cálice de amarguíssima mirra que o Senhor não foi servido beber materialmente (Mc 15, 23): Dabant ei bibere myrrhatum vinum, et non accepit, esgotou a Virgem espiritualmente e lhe repassou toda sua alma. Ai, inocentíssima Virgem! Ai, afligida Mãe! Por isso eu, miserável pecador, não sinto em mim, nem em meus próximos, as ofensas de Deus, porque estou muito longe do conhecimento de que coisa é Deus? E se quem acrescenta a ciência, acrescenta o trabalho; quem, como eu, acrescentava a estultícia, e dobrava a cegueira, que lhe havia de suceder, senão perder o sentimento do mal que fazia, e cauterizar a minha consciência, endurecendo-me aos remorsos dela! Ó, se um pecador dos que o mundo chama honrados, e nele estimam tanto qualquer pontinho de sua vã e triste honrinha, soubesse quem é Deus, a quem tão de assento e tão sem susto nem reparo se põem a desonrar, e a pisar a sua lei, antepondo-lhe a do seu apetite, é certo que enlouquecera, ou rebentara de dor! E pecamos tão facilmente, e com tal repetição, porfia, ingratidão e impudência pecamos? É que perdemos a dor, porque nos sumimos na ignorância, e os pecados, que nos distanciaram do conhecimento de Deus, nos levaram também o pesar deles. A este claro conhecimento que a Virgem Mãe tinha da dignidade de Cristo, se ajuntava outro particular que tinha dos corações danados e intenções malignas de seus perseguidores. Porque da Senhora se verificou o que o Profeta Evangélico dissera de seu Bendito Filho (Is 11, 38): Tu Domine demonstrasti mihi et cognovi, tunc ostendisti mihi studia eorum. De sorte que via a Senhora alongar no madeiro da Cruz os furos para os cravos; e juntamente entendia que isto se fazia de propósito, para que os braços do Senhor à pura violência fossem obrigados a chegar aos tais furos. Via que crucificavam ao Senhor com um pé sobre o outro; e conhecia que intentavam nisto seus inimigos multiplicar as marteladas do segundo, pois o pregavam não só na Cruz, mas também no primeiro; e com tanto maior rasgadura quanto o cravo, para abranger a ambos os pés, metia maior grossura. Via que ao despirem o Senhor para os açoites, lhe tiravam a túnica, sem lhe tirarem primeiro a coroa de espinhos; e conhecia que era para que a mesma túnica levasse consigo a coroa e lha tornassem a cravar com feridas novas. Via que alugavam o Cirineu para levar a Cruz no restante do caminho até o Calvário; e penetrava como aqueles lobos carniceiros sôfregos da matança do inocentíssimo Cordeiro receavam que lhes espirasse no caminho, e f icassem perdendo o saboroso bocado de o crucificarem vivo. Via que suposto que aqueles verdugos estavam conhecendo a sua aflição ao pé da Cruz, no desfigurado do seu rosto e no contínuo de suas lágrimas, com tudo a não apartaram daquele lugar: e penetrava muito bem que era para dobrarem as penas do Filho com a vista da Mãe, e as da Mãe com a presença do Filho. Estes, e outros muitos intentos da malícia e crueldade judaica, não encobria Deus do espírito da Virgem: Tu autem Domine demonstrasti mihi et cognovi, tunc ostendisti mihi studia eorum, para que o seu padecer se assemelhasse mais com o de seu Filho, e depois os tesouros de seus merecimentos fossem quase infinitos. Vê tu agora, alma minha, se vás por caminho acertado, recusando o padecer, e fugindo de tudo o que é Cruz. Vê se quando Deus te oferece ocasiões de imitação de Cristo em seus trabalhos, tens razão de se queixar ou se julgar por desamparado. E vê, se considerando tu com espírito de compunção nas penas da Virgem, deixará de lhe ser grata esta memória, e mui proveitosa para entrares também na parte de suas consolações. Para este conceito que vamos formar do excessivo das penas da Senhora, maior luz se nos descobre ainda se consideramos o amor que tinha a seu santíssimo Filho. Certíssimo é que quanto maior é o amor com que uma alma está unida a outra, tanto mais próprias e íntimas faz as penas ou as glórias dela; porque a força da Caridade quase identificando os corações, comunica a qualquer deles o que goza ou padece o outro, assim como duas folhas de um livro juntas repassam entre si a sua umidade; ou duas lâminas de metal unidas repassam o seu calor; ou em uma cítara, duas cordas igualmente intensas, tocada uma faz estremecer a outra. Quem pois puder explicar o íntimo e o imediato e o semelhante e bem temperado do coração da Virgem com o de Cristo, este poderá entender quanto participou de suas penas. O amor de MARIA Santíssima a Cristo seu Bendito Filho excede incomparavelmente o de todos os Anjos e Santos; e somente é excedido pelo amor infinito com que seu Eterno Pai o ama. Se o amor de S. Paulo a este Senhor bastou para que dissesse que não era o que vivia, mas Cristo o que vivia nele (Gl 2, 10): Vivo autem jam no ego, vivit vero in me Christus, que seria o amor da Rainha e Mestra de todos os Apóstolos? É indubitável que todas as gotas do mar Oceano, e todos os átomos do Sol, não chegam a igualar os grãos da intenção do amor que a Virgem tinha por Cristo. Vendo pois a este Senhor afrontado, escarnecido, blasfemado, crucificado: a que auge de dor chegaria a sua dor! Que profundo e amargo seria o mar de angústias que recolhia em seu coração piedoso! Eis aqui porque S. Bernardo dizia que se a dor da Virgem se repartisse com todos os viventes, bastava para os matar juntos de súbito. Acrescentemos agora que este amor da Senhor era não só natural, mas sobrenatural, não só infuso, mas também adquirido, e além disso continuado com incessantes aumentos por toda a vida: e os títulos de amar ao Senhor eram muitos, e muito poderosos; pois a Virgem pela criação e redenção e batismo era Filha de Cristo; pela Encarnação do Verbo era sua Mãe e sua irmã; e pela união mística era sua Esposa, como se apelida repetidas vezes nos Cantares, e S. Agostinho disse: Haec est, quae sola meruit Mater et Sponsa vocari. Acrescenta-se mais, que o amor natural procedido da geração corporal de seu Filho não se dividiu com pai na terra (como se divide o das outras mães); pois uma só linha, que foi a materna, fechou circularmente a Humanidade toda de Cristo: (Jr 21, 22)Femina circumdabit virum. Enfim, este amor não tem explicação, nem no modo, nem na intenção, nem na extensão: é incogitável, é indefinível, é admirável. E todo este amor na alma da Virgem se achava inteiro quando sobreveio a sua compunção e desconsolação, vendo padecer o seu amado. E as potências, sentidos e membros em que esta pena, imediata ou mediatamente, se recebia, não eram naturalmente grosseiros e embotados, mas finíssimos e perfeitíssimos, para saber mais sentir e padecer: de sorte que para toda esta sensibilidade tinha a Senhora em seu corpo e alma, órgãos por onde soasse; e para todo este mar imenso de angústias, tinha concavidades por onde mais altamente insinuar-se. Formado já, do modo que te foi possível, algum conceito das penas da Virgem Mãe (ainda que mui diminuto e inferior à realidade) colhe dele três principais frutos. Primeiro, louvar a misericórdia e caridade de Deus, que foi servido dar ao mundo em tão inocente e atribulada Virgem, tão fiel Corredentora; e em sua piedade, e intercessão à Igreja, tão poderosa Mãe, que nos abrigue e ampare, e se compadeça de nossas tribulações. Segundo, chorar os teus pecados, pois foram verdadeiramente a causa da Paixão de Cristo, e por conseguinte, das penas de sua Mãe Santíssima; do que deves confundir-te, e não levantar os olhos para este retabulo de aflições e angústias, sem envergonhar-te sumamente. Terceiro, uma determinação firme de seguir e prosseguir o real caminho da cruz, aborrecendo todo o gênero de deleites terrenos e consolações mundanas; pois, na verdade, o amor de si próprio e do mundo, a par deste espetáculo de penas, e desta certeza da verdade do que nos convém para salvar-nos, parece coisa de escárnio ou de infidelidade, negando o mesmo que já cremos. 

Meditação III 
Considera a prodigiosa e invencível magnanimidade da Senhora no meio de tanto padecer. Em alguns lugares das Revelações de S. Brígida, se acha que a Virgem, nesta ocasião, desmaiou e perdeu os sentidos. Porém, o Expurgatório Romano os mandou riscar, como introduzidos subrepticiamente ou mal-entendidos. E Cartagena escreve que algumas pinturas que representavam o desmaio da Senhora ao pé da Cruz se mandaram em Roma recolher. E Bartolomeu de Medina diz que em Espanha alguns Pregadores, por mandado da Santa Inquisição, se desdisseram desta opinião no púlpito. E com razão; porque ainda que a pena da Virgem foi tal que, como diz S. Anselmo, em sua comparação, foi nada a de todos os Mártires, e se a Senhora não fora confortada superiormente, desfalecera — e por isto é verdadeira Rainha de todos os Mártires. Contudo, não desfaleceu, e assim explicam os SS. Padres o que disse o Evangelista S. João: Stabat juxta Crucem JESU Mater ejus: Estava e permanecia em pé junto da Cruz de JESUS, MARIA sua Mãe. Stabat (disse S. Antonino) verecunda modestia, lachrymis plena, doloribus immensa, ita tamen Divinae voluntari conformis, quod, ut Anselmus ait, si oportuisset ad implendum sedundum rationem, voluntatem Dei, ipsa filium in Cruce posuisset, atque obtulisset; neque enim minoris fuit obedientiae quam Abraham. Estava a Senhora em pé junto a Cruz com modéstia vergonhosa, toda cheia de lágrimas, e submergida em dores; porém, tão conforme a vontade Divina, que se, como diz S. Anselmo, importasse ao beneplácito de Deus que ela mesma O pusesse e oferecesse na Cruz, o faria assim; pois não tinha menor obediência que a de Abraão. E S. Boaventura, acomodando os quatro dotes do corpo glorioso ao espírito da Senhora, diz que foi claríssima pela santidade, sutilíssima pela humildade, agilíssima pela piedade e impassível pela paciência. De sorte que podemos entender que a mesma fornalha de tribulação que padecia, recozeu e fortificou sua alma, de modo que o mesmo padecer a tornou como impassível; não porque o seu humano barro deixasse de sentir a atividade da pena que o penetrava; senão porque o mesmo sentir puxava pelos cabedais da fortaleza que dentro a sustentava. E se especulamos mais a razão porque a Virgem não desvaneceu nem as águas vivas deste Oceano de penas arrombaram os diques de sua paciência, foi porque teve perfeito domínio sobre todos seus atos e afetos; e assim, de tal sorte regia todos os movimentos da sua porção inferior, que não pode haver nela coisa alguma indecorosa ou dissonante da Maternidade Divina e da uniformidade ao Verbo humanado, cujo exemplar sempre leu interiormente revelado e o estava lendo exteriormente aberto nas tábuas da Cruz. E não só não desmaiou a Senhora com a força da dor, senão que com ela soube unir por admirável modo uma incrível glória e estimação de que seu bendito Filho remisse o mundo com o preço de seu sangue e vida oferecido voluntariamente. Donde se vê quanto obrigou ao gênero humano, fazendo voluntárias as suas próprias penas (as quais pudera impor moderação) e cooperando na oblação do sacrifício da Cruz com Cristo, que era o principal oferente, e o seu verdadeiro Isaac, com quem fazia uma só pessoa, assim moral como misticamente; pois era sua verdadeira Mãe, e nele estava transformada por amor puríssimo. Omnia creatura in morte Filii dolente (disse S. Matilde) ipsa sola cum Divinitate immobilis et gaudens Filium suum pro mundi salute immolari voluit. E tão espontânea foi esta oblação, que S. Antonino compara nela a vontade da Mãe temporal com a do Pai Eterno, dizendo que de uma e outra se pode dizer com o Apóstolo (Rm 8, 32): Proprio filio suo non pepercit, sed pro nobis omnibus tradit illum. Aprende aqui, alma minha, a saber adorar e estimar o imenso cúmulo dos merecimentos desta Mãe admirável; e a saber oferecer ao eterno Padre os infinitos da Paixão de Cristo; e assistir com grande freqüência, e com devoção ouvir, ou celebrar Missa, onde se renova o mesmo sacrifício da Cruz incruentamente; e a não repugnar à pequena parte dos trabalhos que o Senhor te enviar, antes agradecê-la sumamente, pois com os trabalhos dos justos bem levados se acabam de encher e perfazer os que Deus vê que faltam ainda ao corpo místico de Cristo (que é a Igreja) para se conformar com o seu corpo verdadeiro; e no reino de Deus terá depois aquele com este as semelhanças na glória que teve antes nas penas. E falando com a Senhora, dize: Ó generosa f ilha do grande Patriarca Abraão, e seu antítipo completo no sacrifício do figurado Isaac. Ó espiritual Sacerdotisa do Altíssimo, que lhe oferecestes na Cruz, sem detrimento da vossa inocência, o mesmo Cordeiro que gerastes no ventre, sem detrimento da vossa Virgindade. Ó mulher verdadeiramente forte, cuja fortaleza se achou, e se experimentou na maior prova que podia ter a paciência humana (Pr 31, 10): Mulierem fortem quis inveniet? Certamente o vosso valor veio de muito longe, e dos fins últimos: Procul, et de ultimis finibus pretium ejus. Veio lá das alturas, veio do peito do Pai Onipotente, quando ao vosso enviou a sua virtude para dominar no meio de seus inimigos; e quando fez força em seu braço para destruir os soberbos de coração. Alcançai-me deste Senhor alguma participação desta fortaleza: alcançai-me daquela largueza de vosso coração como as arcas do mar, onde as bravas ondas da Paixão de vosso Filho quebravam sem ficar quebrado; rugiam, e se espraiavam, mas ele não murmurava, nem perdia os seus espaços. Ó se eu fora quieto no padecer! Como estivera já lavrado da mão de Deus. Ó se fosse magnânimo nas tribulações! Como se dignaria de me encher de si; pois a sua largueza em dar não se entornaria com o meu encolhimento em receber. Ó quem pudera sentir e dizer com o vosso amantíssimo S. Inácio Mártir (que teve a dita de vos ver quando ainda éreis mortal) quem pudera, digo, sentir e dizer o que ele posto no martírio sentiu, e disse animosamente: Nunc incipio Christi esse discipulus, nihil de his quae videntur desiderans, ut JESUM Christum inveniam. Ignis, crux, bestiae, confractio ossium, membrorum divisio et totius corporis contritio et tota tormenta diaboli in me veniant, tantum ut Christo fruar: Agora é que começo a ser discípulo de Cristo, não desejando coisa alguma invisível, para assim achar a JESUS Cristo. Venham sobre mim o fogo, a cruz, as feras, quebrem-se os ossos, desconjuntem-se os membros e todo o corpo se desfaça com tormentos, ainda com os mais horrendos que o demônio inventar, com tanto que chegue eu a gozar de Cristo.


Meditação IV 
Ultimamente considera a solidão profundíssima da Virgem Mãe, quando deixando sepultado o Corpo de seu diletíssimo Filho, e Filho que era juntamente pai e esposo da sua alma, se retirou a acompanhar-se só com as dolorosíssimas memórias de sua Paixão sagrada. Então se cumpriu aquele lamento de Jeremias (Jr 1): Lapsa est in lacum vita mea, et posuerunt lapidem super me - Caiu no lago a minha vida, e puseram uma campa sobre mim. Lago, nas divinas letras, também significa sepulcro, conforme aquilo do Salmo (Sl 8): Aestimatus sum com descendentibus in lacum. E neste lago, caindo a vida de Cristo (como se fora qualquer das outras vidas mortais de quem diz outra Escritura: Omnes morimur et quasi aqua dilabimur in terram) caiu juntamente a vida da Senhora, pois Cristo era a sua vida. E sendo posta no Corpo do Senhor uma grande pedra, também outra grande pedra foi posta sobre o coração da Virgem, que foi sob a solidão encerrada no retiro: Posuerunt lapidem super me - pedra verdadeiramente pesadíssima e duríssima pela gravidade de seu pezar; e que lhe não faltaram nem o selo do silêncio inviolável nem as guardas do desvelo contínuo. Tendo os Monges de Claraval estendido sobre uma pedra o corpo defundo de seu Patriarca S. Bernardo, imprimiu-se nela a sua sombra de tal modo, que, dizem, ainda hoje se vê manifestamente; e que procurando os hereges apagar este milagre, cavaram a pedra, mas a sombra ficava sempre mais abaixo. Na pedra, que a virgem na sua solidão tinha posta sobre o coração, estava gravada a sombra ou memória da Paixão e morte de Cristo. Cava tu, alma minha, com a consideração, não porque a possas nem devas apagar; senão para que mais apareça quem altamente ficou gravada. Recordava esta saudosa e divina solitária (e recorda tu com ela juntamente) uma por uma as circunstâncias que teve a sagrada Paixão e Morte de Cristo, e as fazia suas próprias pelo amor e sentimento que ficou sempre vivo. Padeceu o bom JESUS entregue aleivosamente por um discípulo e negado por outro, e desamparado de todos; e isto havendo acabado de lhes lavar os pés e entregar seu Corpo e Sangue verdadeiro no Sacramento. Padeceu o bom JESUS, não violentado contra sua vontade, mas por puro amor e vontade livre, leal, constante, desinteressada. E padeceu morte não só cruel, mas afrontosa; não só afrontosa, mas pública, e em véspera da Páscoa, e reputado por malfeitor, por blasfemo, por hipócrita e por inimigo da paz pública e amotinador do povo. E padeceu como mais digno da morte que os homicidas, o que ressuscitava os mortos; e como mais merecedor de açoites que os escravos, o que deu liberdade aos que o éramos do demônio. Recordavam a Virgem piedosa como foi provado o seu JESUS, que no livro da vida eterna escreve todos os escolhidos, e reprovado pelo seu povo, a quem amara, e honrara, e doutrinara, enchera de benefícios; e concorrendo para esta sentença iniquíssima, os Pontífices, os Reis, os Magistrados, os Sacerdotes, os Letrados, os mais velhos, os soldados, a gente vulgar e plebéia. Recordava também como padeceu irrisões, e bofetadas, e testemunhos falsos, e mofas, e apupadas, e tormentos, em tanto número, de tantos modos, com tal pressa, com tanta fúria, como se chovessem balas ao bater alguma muralha inimiga, ou como se temessem que a vida do Senhor fugindo-lhes antes de examinada em todas as questões da sua crueldade, era culpa de que daria má conta; porém, aparelhada estava a caridade e paciência do Cordeiro de Deus para tolerar muito mais por qualquer alma, se para salvar-se fosse necessário, e para fazer mais copiosa a nossa redenção, mais empenhado e provocado o nosso amor, e mui destruída a potência de nossos tentadores. Tinha a piedosa Virgem estampada vivamente em seu coração a dolorosa memória de algumas circunstâncias de crueldades com que os inimigos do Senhor exercitaram sua mansidão admirável; e foram depois reveladas a S. Brígida, e a outras almas devotas e contemplativas. Tal foi a invenção dos ganchos ou revites, com que estavam rematados os cordéis com que foi açoitado, que, ao retrair o açoite, deixavam sulco em sua delicada carne. O sair do Senhor deste tormento da coluna tão ensopado de sangue, que se conheciam distintas pelo rastro dele suas pegadas. O comprimir o Senhor as pestanas para escorrer o sangue que lhe encobria a vista dos olhos. O não deixarem os algozes acabar-se de vestir, quando ao sair da coluna, o obrigaram a andar, e o Senhor juntamente ia vestindo as mangas da túnica inconsútil. O limpar-se o Senhor com a mesma túnica, do sangue que lhe entrava pelos ouvidos. O revoltarem a Cruz para a terra depois de estar o Senhor já pregado nela, para revirarem as pontas dos cravos. O deixá-la cair de salto na cova, onde lhe firmaram o pé e a arvoraram ao alto. O valerem-se para este arvorar a Cruz, das lanças e contos, metendo-os pelos sovacos dos braços. O ser a última lançada tão penetrante que chegou até as costas. Todas estas eram como sonoras vozes que formavam lastimoso eco no solitário vale do coração da Virgem, e o devem fazer no teu, se a queres acompanhar meditando seriamente estas mesmas memórias, que tanto proveito deixam na alma. Porém, entre todas estas dolorosíssimas memórias, as que mais lhe transpassavam o coração, e o fazia sair líquido pelos olhos em continuas lágrimas, parece foram estas três. Primeira, quando o Senhor desde a Cruz se despediu dela dizendo-lhe: Mulher, eis o teu filho, Mulier ecce filius tuus, e substituindo em seu lugar o discípulo. O commutationem! (exclama neste lugar S. Bernardo) Joanes tibi pro JESU traditur, servus pro domino, discipulus pro magistro, filius Zebedaei pro Filio Dei, homo purus pro Deo vero! Ó troca! Dasse-vos a João por Jesus, ao servo pelo Senhor, ao discípulo pelo Mestre, ao filho de Zebedeu pelo Filho de Deus, ao homem puro por um Deus verdadeiro. Quomodo non tuam affectuosissimam animam pertransiret haec auditio, quando et nostra licet saxea, licet ferrea pectora, sola recordatio scindit? Como não transpassaria vossa alma afetuosíssima ouvir isto, quando só o recordá-lo basta para romper ainda peitos de pedernal ou de ferro? Segunda, quando o viu dar o último arranco, e, inclinada a cabeça, espirar entregando a mais preciosa vida às mãos da mais afrontosa e cruel morte. Terceira, quando deposto da Cruz, e assentada a Virgem ao pé dela, lho entregaram nos braços, e contemplou de mais perto aquele estrago de penas, espetáculo de horrores, e mar de mistérios. Quem poderia aqui (se souber contemplar este passo) deixar, ou de perigar na vida, ou ao menos de suspender-se em pasmo? A B. Batista Varona, Religiosa Menor, sendo-lhe mostrado em espírito, ficou tal que por espaço de quinze dias contínuos parecia haver saído de uma sepultura, sem forças, sem cores, sem fala, desfalecida, palida e quase muda. De toda a sobredita Meditação colhe, e recapacita os seguintes frutos, não te esquecendo de ir f iada na graça de Deus, que é só quem pode converter e reformar o coração humano; e de que a ciência do espírito é especulativa, senão prática, e por isso se faltamos ao exercício das suas lições, nunca se aprende. Primeiro, louvar a Deus que tão compassiva e poderosa Mãe de misericórdia foi servido dar-nos em MARIA Santíssima. Segundo, agradecer a esta soberana Senhora o haver suprido por nós perfeitamente o espírito de compaixão, de graças e oferecimento que devíamos à Paixão de seu Bendito Filho. Terceiro, aborrecer de todo coração o pecado e o amor carnal e mundano, que deram causa às penas de Cristo e da Virgem, e malogram os seus frutos. Quarto, amar o retiro e silêncio, e meditação na Paixão do Senhor, que geram o seguro e sólido espírito de oração e mortificação. Quinto, observar geral caridade com todos os próximos ainda inimigos, e perseguidores; e particularmente consolar os tristes e atribulados. 

Exemplos 
O seguinte caso é digno de toda fé e memória. Referiu S. Brígida nas suas Revelações; e pelo fruto que pode fazer o porei quase pelas suas mesmas palavras. Um Senhor grande quanto ao mundo, que de longo tempo estava sem confessar, caíra enfermo gravemente. E tendo a Esposa (fala a Santa de si mesma) compaixão desta alma, orava por ela. Então apareceu Cristo à Esposa, lhe falou e disse: Dize ao teu Confessor que visite este enfermo, e ouça a sua confissão. Avisado o Confessor, entrou a fazer o seu ofício, e respondeu o enfermo que não necessitava de confissão, porque se tinha confessado muitas vezes, e isto testificou afirmadamente. No seguinte dia, tornou o Senhor a mandar dizer ao Confessor que fosse repetir a mesma diligência. Obedeceu ele, mas trouxe a mesma resposta que primeiro: Que não necessitava de confissão, porque já se confessara muitas vezes. No terceiro dia, apareceu outra vez Cristo à Esposa, e lhe revelou o que havia de dizer o seu ministro àquele enfermo. A cuja presença entrando, lhe falou assim: Cristo, filho de Deus vivo, e Dominador que é de todos os espíritos infernais, te manda este recado: Tu tens em ti sete demônios; um está assentado no teu coração, e o ata para que te não compunges dos pecados. O segundo está assentado nos olhos, para que não vejas o que mais importa à tua alma. O terceiro está assentado na tua boca, para que não fales o que toca à honra de Deus. O quarto está assentado nas tuas partes inferiores, por isto amaste toda a torpeza. O quinto está nas tuas mãos e pés; por isso não fazias caso de roubar e matar os homens. O sexto está nas tuas partes interiores: por isso é dado à gula e à embriaguez. O sétimo está na tua alma, e onde Deus devia ter o seu lugar, aí está agora assentado o diabo inimigo seu. Por tanto, arrepende-te depressa, que ainda Deus terá misericórdia contigo. Isto disse o Confessor e o enfermo lhe respondeu com lágrimas: Como me podereis alentar com a esperança do perdão, estando eu enredado com maldades tantas, e tão públicas? Respondeu o Confessor: Experiências tenho, e assim vo-lo juro, que ainda que vossos pecados foram muito maiores, pela contrição e confissão deles alcançareis salvação. Então o enfermo mais compungido, disse outra vez chorando. Desesperado estava da salvação de minha alma, porque tenho feito homenagem dela ao demônio, o qual me apareceu e falou muitas vezes; por isso, sendo eu já de sessenta anos, nunca em minha vida me confessei, nem recebi o Corpo de Cristo, e fingia negócios para me escusar disso quando os outros fiéis comungavam. Porém, eu vos confesso, Padre, que nunca em minha vida senti compunção tanta, nem me lembra haver tido tantas lágrimas como agora tenho. Confessou-se, pois, aquele pecador quatro vezes naquele dia, e no seguinte, havendo-se confessado outra vez, recebeu também a Comunhão sagrada. No sexto dia partiu desta vida. E o Senhor, falando disso com a Esposa, disse: Este homem serviu àquele ladrão de que primeiro te mostrei estar em grande perigo. O demônio, a quem tinha feito homenagem, fugiu de sua alma por amor da contrição que teve de seus pecados, e agora está no Purgatório. Mas perguntarás: Como mereceu o ter esta contrição um homem envolvido em tantas maldades? Respondo-te que isto fez a minha grande caridade; esperando o pecador até o último ponto que se convertera; e também o merecimento e oração de minha Mãe. Porque, ainda que este homem a não amou de coração, contudo tinha de costume compadecer-se da sua dor e angústias todas as vezes que as considerava ou ouvia nomear. Por tanto achou o atalho da sua salvação, e salvou-se. Notem-se, no referido caso, os seguintes pontos. Primeiro, como nele se vêem confirmadas e praticadas, contra a herética pravidade, as verdades ortodoxas da eficácia do Sacramento da Penitência ministrado pelo Sacerdote; da real presença do Corpo de Cristo na Eucaristia; do Purgatório para expiar as almas que deste mundo partiram com reato de penas; e da intercessão e oração dos Santos na Igreja Triunfante, pelos que ainda habitam na Militante. Segundo, como o Salvador do mundo nos ensina para converter os pecadores, a levá-los por bem com amor, rogando-os, e instando-lhes e alentando-os à esperança do perdão; porém, certificando-nos de que nenhuma das nossas diligências aproveitará, se a graça de Deus desamparar ao pecador (Ecli 7, 4): Considera opera Dei, quod nemo possit convertere, quem ille despexerit. Terceiro, como Cristo nosso bem intitulou aqui a sua Mãe Santíssima, compêndio ou atalho da nossa salvação: Compendium salutis suae invenit et salvatus est: porque como de muitos exemplos se mostra, por outros caminhos se rodeia muito no negócio da salvação, ou se não logra o que por este da intercessão da Virgem se atalha e consegue. E assim pouco é que o mesmo título dessem à Virgem muitos devotos seus.
Quarto, como a Providência e Misericórdia Divina meteu a este grande pecador pelo atalho da salvação que é a devoção da Virgem, visto que o inimigo o tinha metido por outros de sua perdição, que era aborrecimento à Confissão sacramental; e a companhia, servidão e dependência de outra personagem poderosa, a quem o Senhor chama aqui ladrão, e diz que estava em grande perigo, e com efeito não escapou dele, porque sem embargo de ter avisado, se não quis emendar, como se mostra no Capítulo 23, 24 e 25 deste mesmo livro texto, e se este vassalo não morrera, dificultosamente se desenredara do laço. Quinto, como não disse o Senhor que este pecador buscara o atalho de sua salvação, senão que o achara: Compendium salutis invenit. Porque lhe apareceu impensadamente, a modo de tesouro, em que pouco, ou nada, tinha cavado; pois só cuidava em se descuidar dos seus novíssimos, porque o seu caminho era dos que (Jó 2): Ducunt in bonis dies suos et in puncto ad inferna descendunt. 


Na Cidade de Cefena (que é na Romandiola, na Itália) houve dois Clérigos grandemente amigos, porque ambos eram de costumes estragados, e escrito está que Omnis homo simili sui sociabitur: Todo o homem tomará por sócio o que é seu semelhante. Um deles, por nome Bartolomeu, entre tantos espinhos de seus vícios, está só flor brotava e conservava, que era rezar cada dia a N. Senhora o hino Stabat Mater dolorosa, feito em maviosa recordação das angústias que o coração da Virgem padeceu ao pé da Cruz. Desta devoção zombava, e dizia chistes o seu companheiro, parecendo-lhe inútil para escapar do inferno que tão merecido tinha com medida de más obras sobre o cogulo. Um dia, pois, estando o dito Bartolomeu rezando o seu hino, subitamente foi arrebatado em espírito a um tanque ou lago do inferno, onde viu o seu amigo todo mergulhado em horrendo fogo de enxofre. Deram-lhe a provar também daqueles tormentos, e neles estava ringindo os dentes e afogando-se em agonias infernais. Quando eis que lhe aparece a Beatíssima Virgem, e dando-lhe a mão, o livrou fora, e lhe disse: Tu muito bem sabes que por teus pecados mereces ficar nestes ardores eternos. Por tanto, se desejas escapar deles, logo te apresenta a meu divino Filho, e pede-lhe perdão e misericórdia. O pobre Clérigo, vendo-se em tão extremo e formidável perigo, e que se lhe davam segundo trato naquele mar de fogo, não surgia acima eternamente: dito está se se pagaria bem àquela amarra que a Senhora lhe lançava. Buscou a presença do tremendo Juiz Cristo JESUS, e clamou misericórdia, mas o Senhor o lançou de si com ira e desprezo. E não perdendo o réu a confiança, tornou a instar por espaço de penitência, e o Senhor o sacodiu de si, só com a vista de seus olhos indignados. E neste lance o miserável já quase dava por rematada a sentença definitiva de sua condenação. Porém, a Mãe de misericórdia tanto pediu e rogou a seu amado Filho que ele se aplacou, e admitiu embargos e concedeu perdão, debaixo do pacto que o pecador desse volta à sua vida antiga e fizesse frutos dignos de penitência. Neste ponto tornou em si do rapto; e fazendo juízo reflexo sobre o que vira, lhe veio a nova de que o seu amigo era impensadamente morto de um arcabuzaço. Ó meu Deus (disse então consigo todo estremecido) não foi logo esta minha visão sonho vão, ou imaginação vaga, senão aviso do Céu, piedade da Virgem MARIA. Pois alto, já eu sei onde está meu companheiro, e onde eu estaria também, pois íamos pelo mesmo caminho, senão fora a Mãe de misericórdia. Agora quero cumprir o que prometi, ou ela fez que eu prometesse. Disso resolveu-se, deixou o século entrando na Religião dos Franciscanos Observantes, da qual por mais assegurar-se com penitência, passou para a dos Capuchinhos, onde lembrado de que Circumdederunt me dolores mortis, et pericula inferni invenerunt me, viveu e morreu santamente.





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